quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Carta aberta do prof. José Policarpo Júnior do Centro de Educação

Carta aberta do prof. José Policarpo Júnior do Centro de Educação


Primeiramente, entretanto, gostaria de apresentar algumas reflexões de natureza política, para depois apresentar outras de natureza legal, institucional e jurídica sobre as decorrências de tal ato.
Em primeiro lugar, é preciso afirmar de forma alta e clara que nós não estamos em um regime político ditatorial. Estamos em um país com Congresso Nacional eleito legitimamente, com presidente eleito legitimamente, com poder judiciário funcionando com total autonomia, com direito amplo à expressão do pensamento, à livre associação e à livre manifestação. Para que tudo isso existisse, muitos brasileiros lutaram e muitos pagaram com o preço de suas vidas. Não reconheço, portanto, legitimidade na fala de alguém que pretenda diminuir a realização de tal conquista política, cultural e civilizatória do povo brasileiro. Isto não significa nem levemente a suposição de que não se deva lutar pelo aprofundamento do bem-estar da população, pela diminuição progressiva da desigualdade socioeconômica, pelo aperfeiçoamento das instituições. Tudo isso, entretanto, pode e deve ser feito sem ameaça àquelas conquistas mencionadas que levamos décadas para construir. É preciso que todos que entrem no espaço político respeitem as regras do jogo e só pretendam mudá-las pelos procedimentos que essas mesmas regras instituíram a esse respeito. Aqueles que não respeitam tais princípios e entram no jogo democrático sem explicitar que não os respeitam são incoerentes e comportam-se com má-fé, agindo sob a proteção das regras que lhes beneficiam, mas atuando dissimuladamente para miná-las e levar outros a fazerem o mesmo. Esse tipo de atitude portanto é, por princípio, ilegítimo. Aos que não aceitam tais regras, nem querem a elas se submeter, ainda que para modificá-las de acordo com o rito existente, ficam disponíveis as opções do enfrentamento revolucionário aberto, com armas ou não, respondendo, portanto, pelas consequências de seus atos. Esse, portanto, é um princípio geral.
Em segundo lugar, não se deve esquecer que a universidade pública, assim como toda instituição pública, é resultado da decisão da sociedade expressa por meio de todas as instituições (Presidência, Congresso, Leis, ministérios, controle de constitucionalidade pelo Judiciário, etc.) que a fizeram existir. Claro que para isso foi e é fundamental toda a organização da sociedade em associações, sindicatos, e também em manifestações, as quais formulam pautas e reivindicam aspectos que são muitas vezes decisivos para a implantação de determinada política pública de grande alcance social. Nenhuma associação, sindicato, movimento, central, manifestação, etc., tem, entretanto, a legitimidade da soberania do povo brasileiro. Este não é redutível a nenhum deles e, portanto, nenhuma dessas organizações pode pretender ser representante do povo; no máximo, representam seus associados, seus integrantes. O povo, como diz nossa Constituição, fala diretamente (em eleições, plebiscitos, referendos) ou por meio de seus representantes eleitos. Qualquer instância, volto a enfatizar, qualquer instância que queira se por acima do povo, da Constituição e das decisões dos seus representantes eleitos é, por princípio, ilegítima e antidemocrática. Nenhuma maioria eventual em qualquer lugar tem o direito de se autoproclamar mais democrática e legítima do que aquelas. Isso não significa, diga-se desde logo, que as maiorias e a própria democracia não possam cometer grandes injustiças, violências e desgraças, como de fato as cometeram inúmeras vezes, em diversas épocas e lugares. Ninguém familiarizado com a história política, social e filosófica tem o direito de desconhecer isso. Não faço, portanto, um louvor à perfeição da democracia (nesse ponto, e apenas nesse, concordo com aquela famosa frase de Winston Churchill que dizia que a “democracia é o pior sistema de governo, salvo todos os outros”), posto que também tenho a convicção de que nenhum sistema será plenamente justo e verdadeiro enquanto o próprio ser humano não o for - e isso está longe, muito longe de ocorrer, se é que algum dia ocorrerá. Ainda assim, ninguém tem a legitimidade de, utilizando-se do argumento da democracia, pretender revogar ato explicitamente aprovado pelo povo ou por seus representantes se não tiver explicitamente a prerrogativa legal, conferida pelo próprio povo e por suas Leis, para o fazer. Pretender o contrário é autoritário e, por conseguinte, antidemocrático. Pode-se e deve-se claramente discutir e protestar contra ato supostamente injusto e antidemocrático emitido pelas vias institucionais legítimas, para que se possa, pelas próprias vias institucionais, promover as modificações desejadas; todavia, transgredir o aprovado por meio do povo ou dos seus representantes, o que está previsto em Lei, mesmo em nome de um suposto “progressismo democrático”, é algo autoritário.
Em terceiro lugar, é preciso não confundir definições de políticas públicas com gestão da coisa pública. As primeiras podem e devem contar com total participação popular. É por meio da pressão dos movimentos sociais e da sociedade civil em geral que Leis são formuladas, que princípios de políticas públicas são aprovados, inclusive contando com a participação efetiva, prevista em Lei, de movimentos sociais organizados como ocorre com os Conselhos do SUS, da Criança e do Adolescente, etc.. Tal nível de participação popular na implementação das diretrizes é perfeitamente legítima e legal. É fundamental que haja sempre maior participação na definição de Leis, resoluções e princípios de políticas públicas, inclusive havendo a previsão legal de participação de instâncias organizadas da sociedade. A gestão da coisa pública é, entretanto, algo completamente distinto da definição das políticas públicas. Todo gestor e todo agente investido da função pública está na posição de cumprir rigorosamente o que está previsto em Lei, ou seja, aquilo que a própria sociedade, de forma democrática e legítima, definiu que deve ser feito; e isto é assim porque o gestor ou agente público está investido da prerrogativa de o fazer. A nenhum gestor público é dada a liberalidade de não seguir a Lei, nem de deixar de observá-la de modo explícito. O gestor não é definidor de políticas públicas, mas seu mero executor naquilo que está sob sua responsabilidade, sob os rigores e penas da Lei. Isto politicamente significa que o povo baliza os limites estreitos e definidos em que deve se mover o gestor, não podendo este ir além do que aquilo que a Lei aprovada e sancionada pelos representantes do povo designou. Se algo na gestão é estreito, injusto e supostamente antidemocrático, desde que não seja ilegal, é a definição legal da política pública que precisa ser reformada, pelos trâmites e procedimentos democráticos e legais existentes, e não por modificações de gestão não previstas e não autorizadas pela sociedade, por meio da Lei.
Em quarto lugar, a universidade existe para servir à sociedade, e servir bem, com qualidade e excelência, ao pensar e elaborar meios de elevar as condições gerais de vida da população, especialmente no caso da sociedade brasileira que vive ainda em condições de grande desigualdade social e econômica. Uma universidade, assim como toda instituição pública, não existe para atender aos anseios e desejos dos seus integrantes, definitivamente não. A universidade demonstrará que é cada vez mais democrática se for capaz progressivamente de formar pessoas e profissionais, produzir conhecimentos e tecnologias, assessorar organizações variadas da sociedade, debater e refletir sobre assuntos de sua competência, sempre no nível mais amplo e alto possível, que é aquele definido pelo mais alto padrão do conhecimento, reflexão e tecnologia em nível mundial. Quanto mais acesso houver de parcelas da população a esta universidade, e quanto mais esta vier a contribuir com o desenvolvimento social, econômico e tecnológico da sociedade, mais contribuição a universidade dará ao aperfeiçoamento democrático do país. Tudo isso não tem nenhuma relação necessária com a partilha de poder da gestão da instituição entre seus integrantes. Esse tipo de pensamento que confunde participação paritária na gestão das instituições é muito mais um pensamento de matriz corporativista do que democrática; atende aos interesses de corporações e não do povo; e nenhuma corporação pode pretender legitimamente substituir ou representar a decisão e os interesses do povo brasileiro. O poder político da sociedade é exercido na participação paritária na formulação, gestão e deliberação sobre a política pública em questão; essa participação demanda responsabilidades e comprometimentos políticos. Por seu lado, a gestão administrativa de instituições demanda responsabilidades técnicas, acadêmicas (caso das universidades), administrativas e jurídicas (civis e penais).
Tratarei agora das consequências legais e normativas derivadas da deliberação tomada pelo Conselho Departamental do CE em 01/out./2015.
O Centro de Educação está sem Conselho Departamental, ou este está provisoriamente dissolvido, devido à completa ilegalidade em que aquela decisão o jogou. Todo ordenamento legal brasileiro está baseado, e há norma explícita em relação a isso, no entendimento de que todo ato ilegal é nulo e de que toda decisão pretensamente oficial emitida por instância ilegal ou incompetente é também nula.
A decorrência do exposto vai no sentido de que toda a decisão que vier a ser efetivada por esse “Conselho” experimental está passível de ser anulada. É fundamental que pensemos nas consequências disso. Basta lembrar da definição e homologação de concursos, de aprovação de bancas, de progressões de professores, de aprovação de pesquisas, mudanças curriculares, etc.. As decisões na universidade passam por várias câmaras; se uma delas estiver ilegalmente constituída, o vício da ilegalidade contaminará todo o processo.
A decisão é ilegal porque viola o Estatuto universitário em vigor; viola, se não me engano, a legislação sobre o quórum necessário de 70% de docentes nos órgãos deliberativos das IES, e; principalmente viola os princípios da previsibilidade legal dos atos nas instituições públicas e o da investidura legal em função pública prevista em Lei. O que isso tudo quer dizer?
Em primeiro lugar, o CE é parte da UFPE, uma autarquia pública. O CE está subordinado, queira ou não, a todas as normas legais que sujeitam a própria universidade e seu funcionamento interno. Não há legitimidade nem legalidade em uma parte da universidade se recusar a cumprir o que é legal, sob pena de enquadramento infracional daqueles que tiverem cometido tal ato.
Em segundo lugar, há que se ter em mente o que está disposto na Lei sobre a constituição de conselhos e órgãos deliberativos - nenhuma maioria eventual em algum lugar do país, em uma instituição ou parcela da instituição, tem poder ou legitimidade para revogar o que está previsto em Lei, nem mesmo a instituição por seu órgão máximo, o Conselho Universitário, pode transgredir a Lei.
Em terceiro lugar, é preciso ter em mente que a UFPE não apenas é uma IES, mas igualmente uma instituição pública, a saber: uma autarquia pública federal. É princípio básico e fundamental que, no âmbito do direito público, só se pode fazer aquilo que está explicitamente previsto em Lei. Isso é diferente do que ocorre no espaço e nas instituições privadas; nestes, pode-se fazer tudo o que não contrarie a Lei. Não há previsibilidade legal para o que foi feito ontem no Conselho Departamental do CE, antes se trata de algo explicitamente contrário à norma em vigor; trata-se, portanto, de algo claramente ilegal e nulo em todos os sentidos. Além disso, é preciso que se reflita que a função pública é disciplinada por diversas Leis, entre elas aquelas que definem o modo de nela ter ingresso e investidura, como é o caso da Lei 8.112. Ora, pode-se, sob esse ponto de vista, discutir e deliberar a respeito da participação de técnico-administrativos na gestão da coisa pública, em especial da universidade, mas jamais se pode admitir tal coisa da parte de alunos, posto que estes não foram sancionados legalmente pelo ingresso na função e cargo públicos, não estando investidos dos direitos e das responsabilidades, inclusive administrativas e penais, que a função pública exige por determinação legal. Todos nós, servidores públicos, quer docentes, quer técnicos, estamos subordinados a exigências legais que podem nos responsabilizar administrativa e penalmente, posto que temos a autorização legal de realizar determinadas funções públicas. Aos alunos isso não foi conferido. Qual a responsabilidade legal e administrativa que se pode imputar ao aluno na gestão da instituição pública? Nenhuma. Não há amparo legal para isso. Não se pode, portanto, pretender que os alunos venham a exercer funções que estão completamente além do que deles se exige e para o que eles não foram devidamente investidos nem sancionados pela sociedade, por meio da Lei ou de mandato eletivo popular.
Pelos três motivos acima, portanto, a deliberação pela instauração do referido “Conselho Departamental” Experimental é nula e totalmente ilegal. Portanto, todas as deliberações que vierem a ser proferidas por tal instância são igualmente passíveis de anulação. Qualquer pessoa pode alegar isso. Além disso, penso também que, em tese, as pessoas que implementaram tal ato (professores e funcionários) estão passíveis em princípio a responder a inquérito administrativo por cometerem ato flagrantemente ilegal na gestão pública. O reitor e o Conselho Universitário também estarão, em tese, em posição de ilegalidade caso venham a ser coniventes e aprovem o referido ato ilegal.
Por todos os motivos acima, penso que devem ser tomadas medidas urgentes pelo diretor do CE, o Prof. Daniel Rodrigues, pelos demais conselheiros, pelos Plenos dos Departamentos e pelo Colégio de Aplicação no sentido de revogarem tal deliberação. Esse é o melhor caminho e, nesse momento, peço ao Prof. Daniel que, como diretor, assim como conduziu o processo a essa deliberação, possa conduzir reversamente à situação anterior. Penso que seria o melhor caminho, com menos traumas. Enquanto isso, poderíamos pensar em meios de aumentar a participação dos estudantes e funcionários, sem comprometer os aspectos legais e normativos a que o Centro de Educação está submetido e em relação aos quais não possui a liberdade de transgredi-los.
Caso a direção do CE e os conselheiros não tomem providências nesse sentido, penso que é dever dos Departamentos, docentes e servidores cientes do aqui apresentado, tomar as providências no sentido de apresentar o ocorrido ao reitor, ao Conselho Universitário e à procuradoria da UFPE, solicitando sua imediata revogação, sob pena de estarmos todos sob a condição de ilegalidade.
Por fim, posso imaginar que este texto poderá contrariar a muitos, inclusive a pessoas queridas minhas. Não é esta minha intenção. Busquei usar palavras que descrevessem objetivamente os fatos e situações tal como os consigo ver, sem agredir ninguém. É a minha posição e não sou o dono da verdade. Reconheço-me, entretanto, no direito e, principalmente, no dever de apresentar essas considerações que reputo fundamentais e inafastáveis aos colegas, rogando para que as medidas possam ser tomadas no sentido do menor prejuízo a todos.
Abraço a todos.
Recife, 02 de outubro de 2015
José Policarpo Junior – CE/UFPE

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